Prefácio ao livro SERTÃO DE MARAVAIA
Xiko Mendes (da Academia Planaltinense de Letras e
da Academia de Letras do Noroeste de Minas).
O
Regionalismo é uma das nossas
primeiras manifestações culturais e, seguramente, a mais genuína expressão de
Identidade da Literatura Brasileira. Por meio dele traduzimos nossas raízes telúricas
e a valorização da diversidade sociológica de um país marcado por tantos
contrastes em seu desenvolvimento. A formação do território e do nosso povo
resultou da mestiçagem, mas também do confronto entre Sertão e Litoral. Nesse
confronto ideológico, o Brasil-Litorâneo despontava-se como o “lugar dos
civilizados” e do “progresso industrial”, guiado pelo Imaginário Eurocêntrico
que se presumia superior e vanguardista, opondo-se ao Brasil-Sertão Profundo.
Nessa “visão europeizada” o Sertão brasileiro aparecia como o “lugar do atraso
habitado pelo matuto”, e guiado pelo Imaginário Caipira. Cabia então aos nossos
intelectuais presos a esse cosmopolitismo alienante a “missão civilizatória” de
compreender a Nação a partir dos referenciais de cultura e linguagem herdados
dos colonizadores.
Um
grupo de intelectuais se rebelou contra isso mostrando por meio de suas obras a
verdadeira “cara do Brasil Caboclo”. Desde meados do século XIX até adentramos
no contexto estético da Semana de Arte Moderna de 1922, escritores como José de
Alencar, Bernardo Guimarães, Alfredo Taunay, Franklin Távora, Valdomiro
Silveira, Simões Lopes Neto, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Afonso
Arinos e, principalmente, o genial e inconfundível Guimarães Rosa, entre
outros, se enveredaram literalmente nas profundezas desse Sertão marginalizado,
visto como inóspito e dotado de “cultura inferior”. Por meio desses autores,
passamos a compreender e ver um “Outro Brasil”, cheio de vida e valores que se
comunica com o Litoral e com o Mundo usando uma vasta linguagem polissêmica e
vernacular.
Como
sócio do fã-clube de leitores de Guimarães Rosa – o Gênio da Raça que tornou
nosso Sertão universal – senti-me no dever de fazer aqui essas digressões para
falar desse “Sertão de Maravaia”, um
romance que destoa de tudo o que se vê no mundo de hoje, todo voltado para a
Globalização. Sua autora, Ana Maria dos
Reis Cunha Magalhães, já notabilizada como contista, poeta, educadora e
romancista, aqui se revela inteiramente ousada ao nos apresentar um projeto
editorial cujo livro traz a empolgante história de um homem anônimo e matuto,
mas que bem representa de forma emblemática o brasileiro típico do Interior.
Maravaia,
um negro nômade de 24 anos, cheio de sonhos e pobre, vira peão de rodeio em Rio
D’Água e no Chapadão das Corrutelas, transitando entre as fazendas Morro Agudo
e Mulumbu, que pertencem ao Seu Dimo. Apaixona-se por uma professorinha, mas no
leito de morte da mãe dele, se vê surpreendido com a notícia de que era irmão
de sua musa. Essas e outras passagens prometem cativar nossos leitores por meio
de descrições envolventes usando um vocabulário bem caipira ao retratar com
fidelidade o jeito de falar e agir dos matutos. Maravaia, o personagem que
protagoniza essas peripécias pitorescas, é o porta-voz de uma rica história de
vida, aqui recuperada por meio de uma meticulosa reelaboração do linguajar regionalista
típico do Centro-Oeste de Minas Gerais, onde nasceu a autora.
Sertão de Maravaia
conta com maestria a trajetória existencial de um homem simples e analfabeto,
vítima da exclusão social, carregando na alma as cicatrizes das injustiças tão
comuns em nosso país, porém, traz dentro de si a bravura heroica dos sertanejos
de que já nos falava Euclides da Cunha. O enredo perpassa as duas décadas
posteriores à Revolução de 1930, período que marca a transição do Brasil Rural,
agroexportador e dominado pelo voto de cabresto imposto pelo Coronelismo para
um país urbano, “moderno” e industrializado. Esse livro tenta compreender essa
transição. E a existência épico-dantesca de Maravaia é a metáfora “roseana” dessa
travessia.
A
cidadezinha de Rio D’Água é o ponto de mutação dessa transição em que a
rusticidade das cenas e dos personagens contrasta, sucessivamente, com as
mudanças que ocorrem nos cenários. Seu Crispim, o personagem-narrador,
contracena de forma espetacular com o matuto Maravaia, sobretudo quando visita
a escola da Professora Clarice e lá interage com seus alunos por meio de
fabulosas contações de histórias. A autora vai acompanhando, atentamente, tanto
a evolução de Maravaia quanto a do município de Rio D’Água ao descrever o
processo de urbanização com a chegada da eletricidade, a inauguração da Escola
Estadual Getúlio Vargas, a alfabetização “paulofreiriana”
de seu protagonista que ganha certidão de nascimento e “vira cidadão", a
modernização da cidade com a posse do filho de Seu Dimo como prefeito e com o
genro dele, Dr. Marcos, como Delegado titular, entre outros fatos.
A
religiosidade sertaneja se revela, nessa obra, fortemente vinculada a uma
Cultura Matuta com seu linguajar heterogêneo, seus rodeios e festas a São
Sebastião, o Padroeiro do arraial nas quebradas desse Sertão sem fronteiras que
aos poucos vai sendo engolido, criminosamente, por um Brasil globalizado no
qual o discurso midiático mostra o Sertão como algo anacrônico. Ana Reis busca
despertar o debate político-literário em torno dessa questão, instigando-nos a
retomar a mesma preocupação que teve aquele grupo de intelectuais ao qual nos
referimos no começo desse texto.
Sertão de Maravaia
é um romance todo moldado para compreender as mutações culturais do Brasil
feitas de forma abrupta destruindo a Identidade do Brasileiro Caipira e sua
inestimável contribuição à Formação da Consciência Nacional. Por meio desse
romance, um Brasil que ainda reluta em sobreviver nos guetos do nosso Sertão
Profundo, emerge altaneiro por meio da voz de Ana Reis. Ela aqui se apresenta
encarnada na figura de Seu Crispim, um capiau de arguta sabedoria muito
semelhante ao Riobaldo Tatarana, o narrador-personagem do célebre romance “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães
Rosa, de quem a autora admite ser influenciada ao optar pela recuperação da
oralidade matuta do Sotaque Mineiro outrora tão vivo para orgulho de Minas e do
Mundo. Como dizem os “roseanos”, Sertão é travessia. E Maravaia com Seu Crispim
são nossos cicerones nessa viagem com você a Fazenda Morro Agudo. Boa leitura,
amigos do Sertão de Maravaia!
OBS.:
Este livro foi lançado em abril de 2014 durante a II BIENAL BRASIL DO LIVRO E DA LEITURA, em Brasília-DF.