sábado, 19 de abril de 2014

SERTÃO DE MARAVAIA

Prefácio ao livro SERTÃO DE MARAVAIA

Xiko Mendes (da Academia Planaltinense de Letras e da Academia de Letras do Noroeste de Minas).

O Regionalismo é uma das nossas primeiras manifestações culturais e, seguramente, a mais genuína expressão de Identidade da Literatura Brasileira. Por meio dele traduzimos nossas raízes telúricas e a valorização da diversidade sociológica de um país marcado por tantos contrastes em seu desenvolvimento. A formação do território e do nosso povo resultou da mestiçagem, mas também do confronto entre Sertão e Litoral. Nesse confronto ideológico, o Brasil-Litorâneo despontava-se como o “lugar dos civilizados” e do “progresso industrial”, guiado pelo Imaginário Eurocêntrico que se presumia superior e vanguardista, opondo-se ao Brasil-Sertão Profundo. Nessa “visão europeizada” o Sertão brasileiro aparecia como o “lugar do atraso habitado pelo matuto”, e guiado pelo Imaginário Caipira. Cabia então aos nossos intelectuais presos a esse cosmopolitismo alienante a “missão civilizatória” de compreender a Nação a partir dos referenciais de cultura e linguagem herdados dos colonizadores.

Um grupo de intelectuais se rebelou contra isso mostrando por meio de suas obras a verdadeira “cara do Brasil Caboclo”. Desde meados do século XIX até adentramos no contexto estético da Semana de Arte Moderna de 1922, escritores como José de Alencar, Bernardo Guimarães, Alfredo Taunay, Franklin Távora, Valdomiro Silveira, Simões Lopes Neto, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Afonso Arinos e, principalmente, o genial e inconfundível Guimarães Rosa, entre outros, se enveredaram literalmente nas profundezas desse Sertão marginalizado, visto como inóspito e dotado de “cultura inferior”. Por meio desses autores, passamos a compreender e ver um “Outro Brasil”, cheio de vida e valores que se comunica com o Litoral e com o Mundo usando uma vasta linguagem polissêmica e vernacular.

Como sócio do fã-clube de leitores de Guimarães Rosa – o Gênio da Raça que tornou nosso Sertão universal – senti-me no dever de fazer aqui essas digressões para falar desse “Sertão de Maravaia”, um romance que destoa de tudo o que se vê no mundo de hoje, todo voltado para a Globalização. Sua autora, Ana Maria dos Reis Cunha Magalhães, já notabilizada como contista, poeta, educadora e romancista, aqui se revela inteiramente ousada ao nos apresentar um projeto editorial cujo livro traz a empolgante história de um homem anônimo e matuto, mas que bem representa de forma emblemática o brasileiro típico do Interior.

Maravaia, um negro nômade de 24 anos, cheio de sonhos e pobre, vira peão de rodeio em Rio D’Água e no Chapadão das Corrutelas, transitando entre as fazendas Morro Agudo e Mulumbu, que pertencem ao Seu Dimo. Apaixona-se por uma professorinha, mas no leito de morte da mãe dele, se vê surpreendido com a notícia de que era irmão de sua musa. Essas e outras passagens prometem cativar nossos leitores por meio de descrições envolventes usando um vocabulário bem caipira ao retratar com fidelidade o jeito de falar e agir dos matutos. Maravaia, o personagem que protagoniza essas peripécias pitorescas, é o porta-voz de uma rica história de vida, aqui recuperada por meio de uma meticulosa reelaboração do linguajar regionalista típico do Centro-Oeste de Minas Gerais, onde nasceu a autora.

Sertão de Maravaia conta com maestria a trajetória existencial de um homem simples e analfabeto, vítima da exclusão social, carregando na alma as cicatrizes das injustiças tão comuns em nosso país, porém, traz dentro de si a bravura heroica dos sertanejos de que já nos falava Euclides da Cunha. O enredo perpassa as duas décadas posteriores à Revolução de 1930, período que marca a transição do Brasil Rural, agroexportador e dominado pelo voto de cabresto imposto pelo Coronelismo para um país urbano, “moderno” e industrializado. Esse livro tenta compreender essa transição. E a existência épico-dantesca de Maravaia é a metáfora “roseana” dessa travessia.

A cidadezinha de Rio D’Água é o ponto de mutação dessa transição em que a rusticidade das cenas e dos personagens contrasta, sucessivamente, com as mudanças que ocorrem nos cenários. Seu Crispim, o personagem-narrador, contracena de forma espetacular com o matuto Maravaia, sobretudo quando visita a escola da Professora Clarice e lá interage com seus alunos por meio de fabulosas contações de histórias. A autora vai acompanhando, atentamente, tanto a evolução de Maravaia quanto a do município de Rio D’Água ao descrever o processo de urbanização com a chegada da eletricidade, a inauguração da Escola Estadual Getúlio Vargas, a alfabetização “paulofreiriana” de seu protagonista que ganha certidão de nascimento e “vira cidadão", a modernização da cidade com a posse do filho de Seu Dimo como prefeito e com o genro dele, Dr. Marcos, como Delegado titular, entre outros fatos.

A religiosidade sertaneja se revela, nessa obra, fortemente vinculada a uma Cultura Matuta com seu linguajar heterogêneo, seus rodeios e festas a São Sebastião, o Padroeiro do arraial nas quebradas desse Sertão sem fronteiras que aos poucos vai sendo engolido, criminosamente, por um Brasil globalizado no qual o discurso midiático mostra o Sertão como algo anacrônico. Ana Reis busca despertar o debate político-literário em torno dessa questão, instigando-nos a retomar a mesma preocupação que teve aquele grupo de intelectuais ao qual nos referimos no começo desse texto.

Sertão de Maravaia é um romance todo moldado para compreender as mutações culturais do Brasil feitas de forma abrupta destruindo a Identidade do Brasileiro Caipira e sua inestimável contribuição à Formação da Consciência Nacional. Por meio desse romance, um Brasil que ainda reluta em sobreviver nos guetos do nosso Sertão Profundo, emerge altaneiro por meio da voz de Ana Reis. Ela aqui se apresenta encarnada na figura de Seu Crispim, um capiau de arguta sabedoria muito semelhante ao Riobaldo Tatarana, o narrador-personagem do célebre romance “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, de quem a autora admite ser influenciada ao optar pela recuperação da oralidade matuta do Sotaque Mineiro outrora tão vivo para orgulho de Minas e do Mundo. Como dizem os “roseanos”, Sertão é travessia. E Maravaia com Seu Crispim são nossos cicerones nessa viagem com você a Fazenda Morro Agudo. Boa leitura, amigos do Sertão de Maravaia!

OBS.: Este livro foi lançado em abril de 2014 durante a II BIENAL BRASIL DO LIVRO E DA LEITURA, em Brasília-DF.
WOLNEY MILHOMEM
(Patrono da Cadeira 22)

Wolney Milhomem nasceu na cidade de Barra do Corda, no centro geodésico do Maranhão, em 10 de outubro de 1927. Poeta, escritor, jornalista, revelou-se desde cedo um intelectual de mérito.
Como jornalista tinha cuidado especial e exemplar com a matéria que tratava, como poeta, sabia, como poucos, transcender o belo e buscar a pureza da forma estética e do conteúdo imaginado; omo prosador sabia, com destreza inconfundível, compassar as figuras de estilo e de linguagem e fazê-las bailarinas num grande texto. No exercício do jornalismo e propriamente da literatura, a sua obra revela a natureza do verdadeiro artista dotado do poder de talhar magicamente as ideias. Humanista, o fundo e a forma das palavras que compõem indicam o estilista espontâneo. Analista de imprensa, sempre se apaixonou pelas temáticas sérias, interpretando com lúcido equilíbrio a fenomenologia nacional e internacional dos muitos acontecimentos que conturbaram o mundo nas centúrias derradeiras.
Seu livro “O estróina das horas” (já em 2ª edição em português e traduzido para o italiano na coleção de literatura brasileira contemporânea da editora ítalo-latino-americana Palma, de Palermo) é um documento de enfoque da perturbada sociedade humana. Seu ensaio “O humanista Victor Meireles” (Ed. Flama, Porto Alegre) recoloca numa prosa clara e elegante esse clássico pintor pátrio em seu devido plano. Por fim, “A morte da tempestade” desdobra a linha da alta poesia com uma inspiração profundamente humana, exprimindo angústias, diríamos quase apocalípticas, timbradas por uma fé desesperada. A humanidade é o alvo de suas decepções abismais, não acreditando na paz estabelecida senão como uma trégua entre as guerras.
Foi membro da União Brasileira de Escritores, da Associação Brasileira de Imprensa, da Associação Paulista de Imprensa, do Sindicato de Escritores do Distrito Federal, e, em 1974, foi eleito “Accademico Del Medirerraneo” pela Academia Italiana de Letras, Artes e Ciências, em Roma-Itália.

(Fonte: Academia Barra-Cordense de Letras)