segunda-feira, 19 de setembro de 2011

ESCRITORA DA APL RECEBE HOMENAGEM EM PLANALTINA DE GOIÁS
Na manhã do último dia 15/09 (quinta-feira), na Câmara Municipal de Planaltina-GO, a poetisa Kora Lopes (da Academia Planaltinense de Letras) recebeu, MERECIDAMENTE, o título de Cidadã Planaltinense pelos relevantes serviços prestados àquele municipio goiano.
Essa justa homenagem veio coroar os muitos anos de dedicação ao magistério, aos trabalhos sociais e à Cultura das duas Planaltinas: a de Goiás e, principalmente, a do DF , cidade em que nasceu, cresceu e constituiu familia, e a quem a escritora jamais deixou de dar a sua valiosa contribuição.
Mesmo depois de se aposentar das salas de aula, Kora Lopes continuou dedicando-se a Planaltinas-DF, onde por vários anos trabalhou na Administração Regional da cidade e na Casa do Idoso, em que - por dois anos - esteve presidente.
Em seu discurso, a poetisa agradeceu a presença dos amigos e familiares que se fizeram presentes à solenidade, e, emocionada, não economizou palavras quando dos agradecimentos àquela casa de vereadores pela homenagem a ela prestada em reconhecimento ao que fizera por aquele município. Aliás, reconhecimento que a sua cidade natal jamais se deu o trabalho de demonstrar.





sexta-feira, 9 de setembro de 2011

APL SOB NOVA DIREÇÃO
Da esquerda para a direita: Xiko Mendes, Kora Lopres,
Geralda Vieira e Marcos Alagoas


Após seis anos à frente da Academia Planaltinense de Letras, a poetisa Kora Lopes entrega a Presidência da confraria à escritora Geralda Maria Vieira, que comandará os trabalhos da APL pelos próximos três anos.
Geralda Maria Vieira, natural do município de Nova Veneza-GO, titular da Cadeira XXXIII, foi eleita por aclamação em Assembleia Ordinária realizada na noite do dia 25 de agosto do ano em curso.
A presidente que sai encontrou, em 2005, a APL agonizando na “UTI”, porém, com muito trabalho e dedicação, ela, juntamente com seus “fiéis escudeiros” (os integrantes da Diretoria e alguns poucos Acadêmicos interessados em dar uma sobrevida à instituição), conseguiu resgatá-la e recolocá-la novamente em evidência na galeria dos que fazem Cultura em Planaltina-DF.
Foi na gestão Kora Lopes que a Academia Planaltinense de Letras ressurgiu das cinzas e, como fez a Fênix, alçou voo por ares nunca dantes planados, até alcançar o reconhecimento dos moradores de Planaltina e de algumas regiões do entorno. Nesse período, a APL se fez presente - e atuante - na rede mundial de computadores por meio deste blog; promoveu vários eventos culturais; publicou uma Antologia Poética, criou o jornal Planaltina em Letras (em circulação desde setembro de 2010) e, em parceria com a Regional de Ensino e a Administração Regional, realizou o I Concurso Artístico e Literário de Planaltina, evento este realizado em 2011 por ocasião do 152º aniversário da cidade.
Geralda Vieira – a presidente que entra - terá a missão de levar adiante o belíssimo trabalho da sua antecessora, e para isso ela conta com o apoio e a dedicação dos novos integrantes da Diretoria: Xiko Mendes (Vice-Presidente), Joésio Menezes (Diretor Administrativo), Marcos Alagoas (Diretor Financeiro) e Adenir Oliveira (Diretor Cultural e de Comunicação Institucional).
Naquela mesma noite foi eleito, também, o novo Conselho Fiscal da APL, que tem como Presidente, Kora Lopes; Relator, Vanilson Reis, e Sub-Relatora, Aurenice Vítor.
Abaixo, e na íntegra, o emocionante discurso-desabafo da ex-presidente Kora Lopes quando da entrega da presidência a Geralda Vieira.

Caros confrades,
Eu não poderia encerrar o meu mandato, aliás, meu 2º mandato como Presidente da APL, sem dizer a todos o que significou para mim estes 6 anos.
Primeiramente quero falar como foi tornar-me acadêmica: ao receber o convite para participar da APL, por indicação da minha amiga, professora Selma Guimarães, pensei inicialmente em não aceitar porque não me sentia à altura para ocupar uma cadeira numa Academia de Letras, principalmente no meio de tantos “medalhões”, de tantos letrados. Mas a família e os amigos me convenceram a aceitar, e foi assim que no dia 05/12/98 eu me tornei Acadêmica fundadora da APL, tendo como patronesse Cora Coralina, cujo estilo livre e simples me encantam.
Numa festa com pompas e circunstâncias, os 40 membros que formavam a APL tomaram posse, aliás, 40 não, 39.
Desses 39 fundadores que se engalanaram no dia da posse e pareciam tão entusiasmados e determinados a cumprir o Juramento proferido por todos naquele dia, muitos nunca compareceram a nenhuma reunião. Outros, que no início frequentavam as reuniões e que apresentavam projetos e mais projetos sem nunca realizá-los, foram sumindo... sumindo... até que só restasse um pequeno grupo de mais ou menos 15 membros que formou a resistência da APL, a qual resistiu bravamente às dificuldades a fim de que a APL não “morresse”. Eram amantes da literatura, idealistas, sonhadores que não queriam ver os seus sonhos morrerem. Porém, nem todos aqueles que formavam a “resitência da APL” aguentaram a falta de apoio, de estímulo que começou a reinar. E o grupo foi diminuindo até a Academia ficar acéfala por um longo tempo. Mas ainda existiam aqueles que não se deixaram vencer e resolveram reerguer a APL. Após alguns encontros, em 2005 chegaram a um consenso e resolveram fazer uma eleição. Desse grupo, restam: Joésio Menezes, Xiko Mendes, Adenir de Oliveira, Vanilson Reis e eu, Kora Lopes.
Voltando à eleição, ninguém queria assumir a responsabilidade da Presidência e, depois de muitas discussões, me convenceram a aceitar o cargo para um mandato de três anos que, ao final, pelo mesmo motivo, foi prorrogado por mais três anos, que terminam hoje, sem muitas realizações.
Sempre senti um grande orgulho de pertencer à APL e fui uma entusiasta, esperançosa de que ela pudesse produzir muitos frutos. E apesar das dificuldades, ela, embora a passos lentos, está produzindo.
Estar presidente, para mim era um desafio, apesar de saber que eu estava na Presidência não porque me achavam capacitada para tal, mas porque eu representava a solução da Academia naquele momento. Mas, mesmo sabendo disso, aceitei o papel de “Rainha Elizabeth” e tive um 1º Ministro eficiente a toda prova que preencheu as lacunas que iam aparecendo, e por isso fiquei até o fim desse 2º mandato, que deixa um marco que contribuiu para que a Academia não morresse: a mudança do Estatuto, que permitiu a saída dos desinteressados pela APL e, consequentemente, a abertura de vagas para novos acadêmicos, o que nos rendeu ótimas aquisições, as quais juntaram-se a nós para fortalecer essa entidade cultural.
Por isso, ao deixar a Presidência, agradeço a todos, especialmente a Joésio, e desejo a D. Geralda muito sucesso à frente da APL, colocando-me à sua disposição sempre que precisar.
Não posso dizer que a Kora de hoje tenha o mesmo entusiasmo de antes, mas a responsabilidade é a mesma, e eu espero ter dado a contribuição que a APL precisou na hora certa.
Deixo ainda um alerta: abram vagas para novos Acadêmicos!... Planaltina é rica em número de poetas e escritores, os quais poderão dar uma grande contribuição à APL.
Mais uma vez, obrigada a todos!"

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

ENSAIO SOBRE GUIMARÃES ROSA/GRANDE SERTÃO VEREDAS sob a ótica de WALTER BENJAMIN.

Diálogo com Walter Benjamin no Sertão de Guimarães Rosa: Ainda existe Narrador ou o que Narrar nos Gerais após Brasília?

                                                                AUTOR: HISTORIADOR XIKO MENDES (Da Academia Planaltinense de Letras, da Associação Nacional de Escritores, da Academia de Letras e Artes do Planalto, da Academia de Letras do Noroeste de Minas, da Academia de Ciências, Letras e Artes do rio São Francisco e da Academia de Letras, Ciências e Artes de Inhumas-GO).

I – Literatura e História no Sertão dos Gerais ou do Urucuia

“Os lugares sempre estão aí em si, para confirmar [...]. O senhor vê aonde é o Sertão? [...]. O Sertão aceita todos os nomes: aqui é o GERAIS, lá é o Chapadão, lá acolá é a Caatinga [...]”. (ROSA, 1988a: 19, 527, 432).

Este ensaio trata de identificar na obra de ficção “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa a localização do sertão dos Gerais e a possibilidade de nele ainda existirem narradores, especificamente, no Entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas (PARNA-GSV), situado na fronteira de Minas Gerais com Bahia e Goiás. Para isso, utiliza-se de conceitos do filósofo Walter Benjamin e da Escola de Frankfurt do qual ele foi representante.

A mediação dialógica entre esses dois autores serve para tecer argumentos sobre a existência ou não de NARRADORES ou O QUE NARRAR ou contar no (e sobre o) sertão dos Gerais. Essa tentativa decorre do fato de que, segundo J.M. Gagnebin, “a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna” (BENJAMIN: 1996, 10).

O escritor João Guimarães Rosa tentou por meio de sua literatura mostrar um sertão cujo povo passou a ser alvo dessa modernidade que anula a arte de contar. Nascido em Cordisburgo-MG a 27/6/1908 onde viveu até 1918 fixando-se em Belo Horizonte, sua estréia literária se deu com a publicação de um conto na revista “O Cruzeiro” (Ed. nº: 57, em 7/12/29). Diploma-se em Medicina e em 1936 é premiado pela Academia Brasileira de Letras (ABL) pela coletânea de poemas Magma. Torna-se funcionário do Ministério das Relações Exteriores a partir de 1934. Serve o País na Alemanha de Walter Benjamin, na Colômbia de Garcia Márquez e na França de Marcel Proust. Retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte viaja para o SERTÃO DE MINAS GERAIS, onde colherá material, sobretudo para o romance Grande Sertão: Veredas.

Em 1963 é eleito membro da ABL por unanimidade, mas não toma posse por opção (ou superstição?). Morre em 19/11/1967, três dias depois de tornar-se imortal da ABL. São obras de sua autoria: Magma (1936), Sagarana (1946), Corpo de Baile (1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Histórias (1962), Tutaméia (1967), Estas Histórias (1969) e Ave, Palavra (1970). Corpo de Baile foi reeditado posteriormente em três volumes: “Noites do Sertão”, “No Urubuquaquá, no Pinhé” e “Manuelzão e Miguilim”. Diplomata, médico, contista, romancista..., foi como literato que ele se consagrou, mundialmente, como um dos maiores escritores regionalistas de todos os tempos em Língua Portuguesa (ROSA: 1990, 14-22).

Parte significativa da literatura de Guimarães Rosa focaliza a região do URUCUIA ou Gerais.
“O URUCUIA vem dos montões oestes. [...]. O GERAIS corre em volta. Esses Gerais são sem tamanho. [...]. [...]. Viemos pelo URUCUIA. [...]. O chapadão – onde tanto boi berra. Daí, os GERAIS, com o capim verdeado. Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadas espatifadas. [...] Vaqueiros todos vaquejando. O gado esbravaçava [...]. O URUCUIA não é o meio do Mundo?”. (ROSA: 1988, 1, 59, 428).

A história do URUCUIA – este grande vale afluente da margem esquerda do rio São Francisco – está diretamente vinculada à colonização do Centro-oeste do Brasil e do Norte de Minas. Com a descoberta de ouro em Minas Gerais em 1694, cresceu progressivamente a penetração de garimpeiros, tropeiros, pecuaristas e aventureiros de toda espécie para o Sertão, sobretudo após a descoberta também do ouro em Goiás e Mato Grosso nas décadas de 1720/1730. Esse fluxo de pessoas e mercadorias transformou o Vale do Urucuia em trevo de contatos entre as regiões mineradoras do Centro-oeste e os Currais do São Francisco, zona de criação de gado que ia do norte de Minas à região Nordeste. Essas relações comerciais, políticas, culturais e até familiares se intensificaram com a oficialização, em 1736, por D. João V, da Estrada Real Picada da Bahia (MENDES: 2002, 139-144).

Essa estrada ligava Salvador-BA, então Capital do Brasil, a Vila Bela da Santíssima Trindade, então Capital do Mato Grosso, na fronteira do nosso país com a Bolívia, num percurso de aproximadamente 2.630 Km que atravessava o centro da Bahia, além de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O Vale do Urucuia era o ponto de encontro ou interseção dos vários caminhos ou picadas dessa estrada real por meio do Registro Fiscal de Santa Maria do Paranã na fronteira entre Formoso e Flores de Goiás, e do Registro Fiscal da Lagoa Feia, na divisa Formosa-GO/Buritis, ambos instalados também em 1736. Esses postos de fiscalização serviam para administrar o recolhimento de impostos reais e para controle do tráfego evitando o contrabando.

Paralelamente à descoberta de ouro, a expansão da pecuária nordestina pelo rio São Francisco e seus afluentes como o Urucuia se consolidou a partir da década de 1690 quando alcançou o Norte-Noroeste de Minas passando pelo Oeste da Bahia até chegar em Goiás, no Vão do Paranã. Da Bahia os pecuaristas da Casa da Torre (família Garcia d’Ávila) e da Casa da Ponte (família Guedes de Brito), de Goiás a Casa de Grijó (família Cerqueira Brandão) no Paranã e do Norte-Noroeste de Minas os pecuaristas da família CARDOSO se tornaram co-responsáveis pelo intercâmbio entre o comércio de ouro e o de gado. O Urucuia, por causa disto, se tornou região de grande movimentação rodoviária e econômica do Brasil-Colônia e até inaugurar Brasília e desativar essa estrada real com a construção da rodovia BR-O20 (ARAÚJO: 2007, 69).

É dentro desse contexto que se deu a ocupação do Vale do Urucuia a partir do Norte de Minas por meio das cidades de São Romão, existente desde os anos 1690 e transformada em cidade em 1719, e a partir de Paracatu após a descoberta de ouro nesse município oficializada em 1744. Contratado para auxiliar o capitão do mato Domingos Jorge Velho no combate aos índios Cariris, no Ceará, e aos negros quilombolas de Palmares, em Alagoas, o Tenente-Coronel MATIAS CARDOSO DE ALMEIDA e dois membros de sua parentela desceram o rio São Francisco no início dos anos 1690, provenientes de São Paulo, e no retorno se fixaram no Norte de Minas com a instalação de fazendas e fundando cidades como São Romão, Januária e Montes Claros, dentre outras. O URUCUIA SE TORNOU PROPRIEDADE DOS CARDOSO.

Com o fim da Conjuração do São Francisco em 1736, iniciada em São Romão contra a derrama (cobrança de impostos atrasados), o território de Arinos, Buritis, Chapada Gaúcha e Formoso, entre outros nas proximidades, passou a ser colonizado de fato por MATIAS CARDOSO DE OLIVEIRA, filho do Tenente e bandeirante Januário. Daí em diante e também por causa dessa estrada real cujos caminhos margeavam rios afluentes do Velho Chico como o Urucuia, apareceram outros colonizadores que se fixarão como fundadores desses municípios na segunda metade do século XVIII. Antes dessa época, a ocupação se deu por meio da fixação de currais com a criação de gado (v. VASCONCELOS: 1974).

Embora alguns bandeirantes como André Fernandes em 1613 e Lourenço Castanho Tacques em 1670 tenham cruzado o VALE DO URUCUIA, há que se afirmar com certeza que a fixação de moradores nos territórios desses municípios se deu efetivamente após o descoberto de ouro em Paracatu nos anos 1730/40. O trânsito constante de aventureiros pela Picada da Bahia e outras estradas reais como a Picada de Goiás (BERTRAN: 1994, 144-145) que ligava o Litoral (RJ e SP) com o Centro-Oeste passando por Paracatu facilitou essa fixação e a expansão de fazendas e população dentro do VALE DO URUCUIA dando origem às cidades atuais localizadas no entorno do PARQUE NACIONAL GRANDE SERTÃO VEREDAS.

Quando da primeira edição do romance de Guimarães Rosa em maio de 1956, o URUCUIA era “povoado” por sertanejos vaqueiros, cavaleiros e tropeiros, tocadores de grandes boiadas porque a pecuária era a principal atividade econômica da região. Após a inauguração de Brasília – DF em 1960 a pecuária foi substituída pelo AGRONEGÓCIO, pois os municípios da região, infelizmente, é parte da fronteira agrícola que se alarga a partir do Centro-oeste destruindo o Sertão (CERRADO), que G. Rosa conheceu.

É esse Urucuia pecuarista, tropeiro e boiadeiro que é retratado como parte significativa do enredo da obra GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Hoje, tantas décadas depois, numa das cidades desse sertão urucuiano ou dos Gerais é realizado o ENCONTRO DOS POVOS do Grande Sertão Veredas. É um evento festivo anualmente feito em Chapada Gaúcha-MG desde 2002. E “nesses encontros, além de diferentes apresentações culturais que valorizam as TRADIÇÕES das cidades localizadas no Entorno do Parna-GSV, são também realizados seminários sobre CULTURAIS TRADICIONAIS e Meio Ambiente” (ARAÚJO, 2007: 111). Esse ENCONTRO se propõe como fim essencial apresentar para os turistas os Gerais e quem é o GERALISTA ou BAIANEIRO cuja cultura híbrida é resultado da mistura de valores culturais do norte-noroeste de Minas com a cultura nordestina, sobretudo da Bahia (COSTA, 2003).

Para compreender melhor essas relações entre literatura e história no Sertão dos Gerais nos utilizaremos aqui de conceitos do pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940), que foi um dos principais representantes da escola de pensamento localizada em Frankfurt, e ali se estabeleceu nos anos 1920 por meio do Instituto de Pesquisa Social. Essa escola filosófica é formuladora da TEORIA CRÍTICA, que questiona os paradigmas iluministas ou cartesianos da Razão Instrumental, essa razão marcada pela idéia de progresso contínuo e linear, que celebra o triunfo dos vencedores, aniquila o homem e exerce um violento domínio sobre a humanidade e a natureza.

Dentro da Teoria Crítica, o pensamento benjaminiano busca compreender a vida por meio das descontinuidades temporais e espaciais trazendo para o palco da história e da ciência os fatos excluídos e os acontecimentos sufocados ante o ANJO DA HISTÓRIA que assiste a tudo isso, perplexo e inerte (BENJAMIN: 1996, 225-227, 229). Para questionar esse progresso que esmaga outros projetos alternativos de homem e de humanidade, era necessário que se subvertesse esse paradigma evolucionista e – contrariando Hegel – entender que todo REAL pode ser IRRACIONAL, ou que todo VERDADEIRO, pode também ser TODO FALSO (MATTOS, 1993: 22).

Para citar W. Benjamin falando sobre “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, no romance Grande Sertão: Veredas “tudo aqui excede a norma” (1996: 36). Publicado no mesmo ano em que se iniciava a construção de Brasília, enquanto esta obra encampada pelo Presidente Juscelino Kubitschek celebra o triunfo do progresso técnico da civilização cristã ocidental que veio para dominar o SERTÃO, identificado como bruto, inculto e deserto de idéias e pessoas (MENDES: 1995, 35-38), o romance roseano é uma obra que contraria esse entendimento iluminista equivocado, BUSCANDO UM SERTÃO REPLETO DE HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E “TEMPOS CHEIOS DE AGORAS”, o tempo que constrói um diálogo permanente entre passado e presente na história e na ciência. A MODERNIDADE avança sobre o sertão, quer destruí-lo, mas ele insiste em continuar existindo para além do próprio tempo dessa modernidade.

“O senhor tolere: isto é o SERTÃO. Uns querem que não seja: que situado Sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do URUCUIA. (...). LUGAR SERTÃO SE DIVULGA: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade” (ROSA: 1988a, 1).

É sobre esse tempo e esse lugar tão bem identificados por Guimarães Rosa numa obra de ficção, que vamos refletir sobre narração no SERTÃO DOS GERAIS. Contrariando a lógica capitalista e cartesiana de progresso, o Sertão ainda está vivo conforme veremos neste ensaio. Se “a arte de contar está chegando ao fim”, como adverte Benjamin, segundo J.M. Gagnebin (BENJAMIN: 1996, 12), tolerar o sertão, antes de tudo, implica conhecer suas linguagens e temporalidades que resistem apesar dos impactos provocados pela modernização crescente do interior do Brasil. Modernidade essa que transforma o sertão em fronteira agrícola destinada ao agronegócio, que destrói o meio ambiente e as culturas tradicionais (DUARTE e THEODORO, 2002).

II – (Re) descobrindo o “SERTÃO DOS GERAIS” e Seus Narradores no Entorno do PARQUE NACIONAL GRANDE SERTÃO VEREDAS (Parna – G.S.V) após a Inauguração de Brasília em 1960

A construção de Brasília a partir de 1956 foi alvo de um discurso decadentista que apresentava o sertão, sobretudo o Centro-oeste ou Planalto Central, como um lugar despovoado, vazio de gente e cultura (CHAUL, 2002). Chapada Gaúcha, que é uma das cidades do ENTORNO DO PARNA-GSV, e resultou da colonização sulista nessa região depois que surgiu a nova capital federal, também é alvo desse discurso, conforme podemos ver na fala do Sr. Ercílio, morador dos Gerais: “... Na Vila [dos Gaúchos] só tinha carrascos, não tinha ninguém lá não... era um carrascão, não tinha água, tinha ninguém... só o carrascão lá, bruto” (JACINTO, 1998: 113).

A fala do Seu Ercílio, que reflete em parte a cruel realidade dessa região, é um exemplo desse impacto da modernidade sobre o Sertão dos Gerais. Diante desse discurso que celebra o progresso será que ainda é possível identificar a existência ou não de contadores de história na região que é parte do enredo do romance de Guimarães Rosa? Para isso, é necessário que tomemos conhecimento prévio do lugar onde há a possibilidade de encontrá-los. Um desses lugares é o sertão dos Gerais. Nele hoje está localizado o PARQUE NACIONAL GRANDE SERTÃO VEREDAS, que é uma unidade de conservação para proteção integral do Meio Ambiente onde é proibida a permanência de POPULAÇÕES TRADICIONAIS (MENDES, 2007: 320-329).

O PARNA-GSV foi criado pelo decreto federal 97.658 de 12/4/89 com extensão de 84 mil hectares, ampliada para 231 mil, em 2004. Mais de 80% do seu espaço pertencem aos municípios de Formoso-MG e Cocos-BA, mas também abrange áreas de Arinos e Chapada Gaúcha, em território mineiro (MENDES, 2002: 108-110). Os municípios citados são parte desse SERTÃO DOS GERAIS (SCHETTINO, 1995: 28) e integram as bacias dos rios Urucuia e Carinhanha onde há o ENCONTRO de dois importantes biomas do País – Cerrado e Caatinga – e onde fazem FRONTEIRAS duas grandes regiões geoeconômicas: NORDESTE e CENTRO-SUL do Brasil.

A região em questão também é chamada, em sentido restrito, de TRIJUNÇÃO porque aí se juntam três estados fronteiriços: BA/GO/MG. Recentemente tem sido nomeada como microrregião URUCUIA-GRANDE SERTÃO que reúne onze municípios – um de Goiás, e o restante de Minas – entre os quais os já citados. Nessa representação de territorialidade, Cocos é excluído por não pertencer à Bacia do Urucuia (ARAÚJO, 2007: 50, 58). Neste ensaio, considera-se como ENTORNO do Parna-GSV os municípios com territórios contíguos a essa unidade de conservação: Formoso, Arinos, Chapada Gaúcha e Cocos. Como afirma Guimarães Rosa:
“– Aqui é como lá, quase igual a Natureza...., dizia Miguel. Que pergunte: a lá, onde?
– Nos GERAIS.
– Mas o GERAIS principia ali donde, logo depois do rio.
– Começa ou acaba?” (ROSA, 1989b: 109).

Como se vê, essa é uma região de TRIPLA FRONTEIRA. É fronteira cultural porque nela estão presentes: a CULTURA BAIANEIRA, híbrida – fusão de valores nordestinos e do norte-noroeste de Minas – e a influência ascendente da CULTURA SULISTA proveniente dos imigrantes localmente chamados de “Gaúchos” (V. COSTA, 2003). É também FRONTEIRA AGRÍCOLA porque desde os anos 1970 expande nessa região o Agronegócio que incorpora ao Capitalismo exportador vastas áreas com impactos socioambientais sobre o Entorno do Parna-GSV (V. MENDES, 2007).

E é ainda uma fronteira habitada por COMUNIDADES IMAGINADAS com limites roseanamente indefinidos porque não se sabe onde começam ou acabam os GERAIS. Como explica Schettino sobre a categoria SERTÃO, “estes espaços são geograficamente móveis no tempo e plurais, transpondo-se entre diferentes meios naturais e ocupações humanas [...]. Isso afirma a existência não de apenas um sertão, mas de sertões”. (SARAIVA, 2004:79).

É nessa trijunção móvel de “fronteiras porosas e indistintas” onde “as comunidades deverão ser distinguidas, não pelo caráter falso/genuíno, mas pelo modo como são imaginadas” (ANDERSON, 2005: 26, 41), e onde “esta vida está cheia de ocultos caminhos [...]” (ROSA, 1988a: 132), que buscaremos IDENTIFICAR os Gerais onde, possivelmente, ainda teremos narradores tradicionais do sertão.

Guimarães Rosa apresenta-nos em páginas distintas visões diferentes sobre esse SERTÃO:
“O senhor sabe: Sertão é onde manda quem é forte [...]. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! [...]. Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar [...]. ...o Sertão se sabe só por alto [...]. No Sertão até enterro simples é festa [...]. Sertão foi feito é para ser sempre assim: alegrias [...]. ‘ – O senhor não é do Sertão. Não é da terra...’ [...]. ...no centro do Sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! [...]. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera [...]. ... só se sai do Sertão é tomando conta dele a dentro... [...]. Sertão é o sozinho. [...]. Jagunço é o Sertão. [...]. O Sertão tem medo de tudo [...]. ‘ – O Sertão é bom. Tudo aqui é perdido. Tudo aqui é achado [...]’. Sertão velho de idades. [...]. Sertão que se alteia e se abaixa [...]. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo que acabar, cidade acaba com o Sertão. Acaba? [...]. O sertão não tem janelas nem portas. O sertão está em toda parte, o sertão é do tamanho do mundo, é o dentro da gente” (1988a, 11, 17, 470, 46, 443, 227, 248-249, 243, 270, 272-273, 400, 479, 144, 1, 60 e 270).

Como se pode ver, Grande Sertão: Veredas é um romance que produz imagens heterogêneas sobre o sertão. Essas imagens mostram um sertão que resiste à modernidade cartesiana criticada pela Escola de Frankfurt. Como diria Benjamin, se “todo monumento de cultura é também um monumento da barbárie”, a entrada da modernidade trazida por Brasília para o sertão dos Gerais (1996: 225), se por um lado expressa os danos provocados por esse discurso civilizatório propagador do DECANDENTISMO de que a nova capital federal é o símbolo, por outro ele confirma que essa lógica do progresso a qualquer custo ainda não se revelou capaz de destruir os valores, as tradições, enfim, todo o imaginário de um povo sertanejo cujo passado insiste em dialogar com o presente na construção ou na busca permanente de sua própria identidade.

Para BENJAMIN, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (1996, 224). A ficção de Guimarães Rosa busca trazer para a Modernidade pós-Brasília uma representação desse passado de isolamento geográfico e de dificuldades intransponíveis do qual era vítima o Sertão dos Gerais antes da transferência da Capital Federal (MENDES: 2002, 161-162).

O “poder dos lugares” do sertão é maior que o monumentalismo faraônico que tenta solapar as culturas tradicionais. Guimarães Rosa mostra que o Sertão não se rende, não se entrega à volúpia da indústria cultural porque “quando menos se espera”, o sertão está aí, vivo, seduzindo-nos com suas peculiaridades. Quando se julga que o sertão desapareceu, ele reaparece como a luz no fim do túnel, revelando-nos segredos e mistérios de um povo sofrido pela barbárie do progresso.

O sertão é portador de uma ubiqüidade que o faz resistir, tornar-se móvel, transportar-se no imaginário de seus moradores, para evitar a completa destruição. Quando a modernidade tenta se aproximar do sertão ele foge, muda suas fronteiras, internaliza-se na alma dos sertanejos, transmuta-se diante do moderno.

Se “quem desconfia, fica sábio [...]”; se ao mesmo tempo “sei e não sei [...]”; se “o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende” pode-se afirmar, com Guimarães Rosa, que “vi tudo indeciso de mim, estarrecido [...]” (ROSA: 1988a, 117, 56, 15, 501). E que este estarrecimento é fruto da incapacidade do homem moderno entender que nenhuma civilização por mais avançada que seja tem o poder de mexer na estrutura simbólica das tradições e saberes de comunidades locais como as que residem no ENTORNO do Parque Nacional Grande Sertão Veredas a ponto de destruí-las por completo.

Sempre há uma centelha sobrevivente, um pinto de luz aceso no meio da catástrofe esperando que alguém relampeje o farol da história. Para GAGNEBIN – citando Marcel Proust – Guimarães Rosa “... não encontra o passado em si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença do passado no presente, e o presente que já está lá, prefigurado no passado, uma semelhança profunda...” ((BENJAMIN: 1996, 15).

A modernidade é o tempo do esquecimento (GAGNEBIN: 1993, 55), onde a história se constitui de tempos vazios e homogêneos (BENJAMIN, 1996: 229, 231). Rosa busca em sua ficção uma representação do passado no Sertão dos Gerais como contraponto a esse esquecimento. Segundo GAGNEBIN, “o depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam uma experiência coletiva...” (BENJAMIN: 1996, 11).

Quando Rosa fala pela boca de seu personagem-narrador, Riobaldo Tatatarana, e apresenta-nos os relatos de jagunçagem no sertão do rio São Francisco – o rio dos currais e da colonização pecuária – o que ele tenta é dar expressão a diferentes vozes de sertanejos anônimos, vítimas de um silêncio imposto por essa modernidade iluminista porque “... o importante para o autor que rememora não é o que viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência” (BENJAMIN: 1996, 37).

Guimarães Rosa rememora o sertão dos Gerais como um lugar bucólico, com suas paisagens naturais, meio ambiente quase intacto, com suas boiadas, com seu povo livre pela vastidão de chapadas ou planícies arenosas porque o sertão é travessia:
“[...]. E vi meus Gerais! [...]. ... nos Gerais, a mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme [...]. O ar dos Gerais, o senhor sabe [...]. Mas, de parte do poente algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucuia, e nesse céu sertanejo azul-verde [...]. O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio? [...]. ‘Vou para os Gerais! Vou pra os Gerais!” (ROSA: 1988a, 268, 428, 163, 168, 438, 45, 482, 255).

Os Gerais são o lugar de reencontro do homem com a natureza, onde o homem sente com os olhos, vê com o coração, onde se faz a sinestesia do encantamento do mundo. A Razão Instrumental do mundo capitalista, prisioneiro da lógica cartesiana ainda não ocupa, completamente, o lugar que a marcha inelutável do progresso um dia tomará para, em nome do futuro, triunfar sobre o anjo da história. Os Gerais ainda são, cinco décadas após a inauguração de Brasília e a publicação do romance de Rosa, um lugar onde passado e presente se encontram para um diálogo intertemporal, dinâmico e construtor de historicidades, a partir da perspectiva dos vencidos pela modernidade iluminista.

O Sertão dos Gerais, especificamente na área do entorno do PARNA-GSV, é um lugar onde ainda é possível produzir representações sobre o passado por meio da narração tradicional como há cinqüenta anos quando Brasília fazia o parto da modernização do sertão. Guimarães Rosa (ARAÚJO: 2007, 19, 26, 52, 56, 71), cita vários desses lugares onde ainda hoje podemos encontrar o sertanejo que ele transmutou em seus personagens: na comunidade de Serra das Araras, na do Vão dos Buracos ou na do Ribeirão de Areia em CHAPADA GAÚCHA-MG; no Assentamento São Francisco, no vale do rio Piratinga, em FORMOSO-MG e em muitas outras pequenas localidades roseanas da região, o GERALISTA – habitante típico e rústico desse sertão – está vivo à espera de quem busca ouvir seus RELATOS REMINISCENTES. Quem o descreve é o próprio Rosa:
“Aquele POVO estava sempre misturado, todo o mundo. TUDO ERA FALADO A TODOS, do comum: às mostra, às vistas. [...]. ... pessoal dos GERAIS – gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias. [...]. Pelos modos, pelas roupas, aqueles eram gente do Alto URUCUIA. Catrumanos dos Gerais. [...]. O senhor estando lembrado: aqueles cinco, soturnos homens, catrumanos também, dos Gerais, cabras do Alto Urucuia [...]. Mas a vida não é entendível [...]. Nem o senhor, nem eu, ninguém não sabe [...]. De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; [...]. Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho [...]. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento”. (988a: 145, 73, 438, 187, 82, 145, 119).

Esse GERALISTA, nascido do encontro cultural entre Mineiros e Baianos durante a ocupação pecuária nos currais do alto médio São Francisco (VASCONCELOS, 1974: 13-60) – aqui descrito acima por Guimarães Rosa e também a imagem desse autor e de sua obra que é parcialmente ambientada na região, são elementos utilizados como marketing para atrair turistas que vão ao ENTORNO do Parque Nacional Grande Sertão Veredas em busca de um sertão idealizado, bruto, rústico, não influenciado pela Modernidade que está presente na região desde a inauguração de Brasília (MENDES, 2007: 175-188).

Esse Entorno fica a cerca de 300 Km de distância da capital federal – o que facilita o acesso ao Turismo. Nesse entorno estão localizadas aquilo que J.M. GAGNEBIN chama de “Comunidade da Experiência”, aquela que “funda a dimensão prática da narrativa tradicional [porque] aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito” (BENJAMIN: 1996, 11).

O ENCONTRO DOS POVOS DO GRANDE SERTÃO VEREDAS, que se realiza em julho todos os anos em Chapada Gaúcha, é o lugar privilegiado para que o Brasil Profundo se encontre consigo, porque esse é o encontro do Moderno com o Arcado. É neste evento que aparecem os NARRADORES TRADICIONAIS, o Geralista típico, sobrevivente da modernidade tecnicista questionada pela Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. É neste evento que encontramos diferentes comunidades de experiência prontas a transmitir conselhos – como diria Benjamin, porque entre vozes e silêncios de cada um de seus membros, existe um mar de histórias a serem relatadas, existe sabedoria a ser transmitida.

Para GAGNEBIN, “cada história [dessas que se ouve ou se é apresentada no Encontro dos Povos], é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos” (BENJAMIN: 1996, 13). Esse narrador que ainda existe no sertão do URUCUIA, mas que está em vias de extinção, é porta-voz de histórias superinteressantes como esta que agora reproduziremos e é a primeira parte de um poema de nossa autoria (ARAÚJO: 2007, 40-46):

Antônio Dó de Volta ao Grande Sertão Veredas

Com permissão do Seu Delegado
Que hoje comanda esta Cidade,
Bato no peito e fico animado
Com a licença da Autoridade.
Quero falar de um Homem Bravo
Que lutava sempre pela Verdade;
Só queria do Poder Togado
A Justiça e a Liberdade.
É Antônio Antunes de França,
Que nasceu em Pilão Arcado;
Deixou a Bahia com esperança
De ser grande criador de gado,
Mas no caminho a vingança
Fez seu direito ser ignorado.
Foi de Monte Azul pra São Francisco
Fixar residência na Boa Vista,
Mas lá num pacto sinistro,
Ele foi vítima de grande injustiça.
Neste mundo de muita fartura
Controlada por coronéis do sertão
Foi trapaceado na venda de rapadura
E ficou sem seu dinheiro na mão.
Aí veio outra disputa dura
Onde ganhou quem não tinha razão.
Convencido de que a Justiça não nega
Na Lei o Direito de Propriedade,
Brigou com o Coronel Chico Peba
E foi preso na cadeia da Cidade.
Aí viu que a Justiça não é cega
Nem tudo ocorre na legalidade.
Passou a não acreditar em mais nada
Depois que saiu daquela prisão,
Pois o Coronel que cercou a aguada,
Motivo da briga em questão,
Ganhou na lei... e na marra!
E ele, além do assassinato do irmão,
Viu a sua fazendinha roubada.
Revoltado com tudo isto,
Fugiu pra bem longe no Sertão.
Deixou a cidade de São Francisco
Atrás de jagunços no Marco Trijunção.
Voltou para vingar o coronel maldito
E ordenou a temerosa invasão
Atacando a sede deste Município.
Ele queria que fosse indenizado
E a promessa feita não foi cumprida,
Pois atrás dele vieram os soldados
Libertando a cidade invadida,
Mas fora dela, seu bando armado,
Derrotou a Polícia na saída.
Lutando contra essa injustiça,
Virou personagem de jornal,
Fugiu pra Vargem Bonita,
Famoso na crônica policial.
Perseguido pelo comandante Felão,
Que incendiou aquele vilarejo,
Correu atirando em toda direção
Tornando-se um Herói Sertanejo!
O Comandante, que não tinha medo,
Fez o povo daquela vila arrasada
Ritualizar a Dança da Troca de Dedos
Na boca e... entre as nádegas.
Antônio Dó foi pro Marco Trijunção,
Divisa de Goiás, Bahia e Minas.
Ali veio nova perseguição,
Pois esta parecia ser sua sina.
Mas agora teve proteção
De um coronel cheio de carabinas!
No Itaguari, afluente do Carinhanha,
Fronteira entre Minas e Bahia,
A Polícia, com a sua sanha
Atrás do bando que perseguia,
Foi derrotada de forma tacanha
E o bando fugiu pra Sítio d’Abadia!
O Comandante Amaral, ferido e só,
Ordena à sua Polícia a retirada.
Deixando Goiás, Antônio Dó
Entra no município de Januária.
Mas antes agradece ao Homem
Que o protegeu em Sítio d’Abadia,
O Coronel Joaquim Gomes,
Que todo o Marco Trijunção temia!
Seu destino agora terá outro fim,
Pois vira “juiz de paz” no sertão.
Vai morar no povoado de São Joaquim
Arbitrando causas em comissão.
Vira um bandido mercenário
Combatendo atos de injustiça.
É a vingança contra latifundiários
Que não respeitam a lei escrita!
Desculpe, Seu Delegado, agora
Porque tudo isto é verdade,
Pois às vezes a Justiça demora
E não julga com imparcialidade.
Como um bandido profissional
Revoltado com erros da Justiça,
Antônio Dó inicia o ritual
De matar e correr da Polícia.
Mas escapam entre os dedos seus anéis
Quando decide matar um fazendeiro,
Consegue contra ele unir os coronéis;
Cai em desgraça e em desespero.
Ousada, a sua quadrilha assassina
Decide matar João Soares,
Latifundiário de Formoso de Minas,
Amigo do Major Saint’Clair F. Valadares.
Associando-se com outros bandidos,
Rouba a fazenda e muito gado.
Daí em diante é perseguido
Sem trégua por todo lado.
O Coronelismo apóia a Polícia.
Agora o que se vê é o anúncio:
“Caiu nas mãos da Justiça
A maioria de seus jagunços!”.
Antônio Dó – o Rei do Sertão,
O Homem com bala na agulha,
Divide o espólio da família Beirão
E leva muito dinheiro na cuia.
O dinheiro desperta a cobiça
Em todos os lugares por onde anda.
A esposa querendo ser viúva rica
Manda matá-lo e contrata o capanga.
Esta cena, que sempre me lembro,
Ocorreu em mil novecentos vinte e nove:
Foi bem no dia 14 de novembro,
Quando Antônio Dó, traído, morre!
Em Serra das Araras ali jaz sem alamedas.
Foi enterrado, cantado em verso e prosa.
Vive nas páginas de Grande Sertão: Veredas
Como personagem de Guimarães Rosa!
E aqui sai de cena o Herói do Sertão,
O Homem do qual tanto se orgulha
Por ter lutado de armas nas mãos
Por Justiça no Vale do Urucuia!!!

Essa poesia épica que acabo de ler é a prova de que a substância básica, a matéria-prima principal de que Guimarães Rosa fez uso em seu clássico romance GRANDE SERTÃO: VEREDAS, ainda está presente no sertão dos Gerais. Como afirma o pensador Walter Benjamin:
“A memória é a mais épica de todas as faculdades. [...]. Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica. [...]. A epopéia propriamente dita contém em si [...] a narrativa e o romance [...]. A Reminiscência funda a cadeia da tradição. ...a Rememoração, musa do romance, surge ao lado da Memória, musa da Narrativa, depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na Reminiscência” (1996, 210-211).

Guimarães Rosa, como romancista, rememora em sua obra o sertão do gado, o sertão antes de Brasília, antes do agronegócio. E hoje o ENCONTRO DOS POVOS DO GRANDE SERTÃO VEREDAS, de que já falamos, celebra o sertão que sobrevive na memória de narradores tradicionais anônimos que vivem em comunidades de experiência num mundo cada vez mais pobre em experiência (BENJAMIN: 1996, 114-119) porque a arte de contar tende, gradativamente, a desaparecer com a modernização.

A cada época de nossa história, “são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente [porque] o senso prático é uma das características de muitos narradores natos” (1996, 200). E esse narrador vem sendo vem progressivamente extinto quando ninguém mais troca a novela da televisão por uma conversa boa e prolongada com pessoas idosas, ninguém mais tem paciência para ouvir o seu interlocutor, ninguém mais tem tempo para ficar sentado na rede do alpendre para relatar ou ouvir acontecimentos épicos onde passado e presente se juntam numa co-existência temporal dinâmica.

O sertão dos Gerais, apesar de sua proximidade geográfica com Brasília, pois sofre diariamente sua influência, ainda guarda boa parte das histórias que serviram de inspiração para o enredo do romance GRANDE SERTÃO: VEREDAS, de Guimarães Rosa onde o sertão manteve-se local e regional “desregionalizando-se” ao mesmo tempo para tornar-se universal sem perder sua identidade. Como diz o próprio Rosa em trecho aqui reproduzido, “o sertão está em toda parte” porque “o sertão é o dentro da gente”.

III – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos neste ensaio que é extremamente vital nesse processo de globalização ao qual estamos todos submetidos de forma inevitável, que a valorização da experiência partilhada (ERFAHRUNG) entre grupos sociais ou comunidades locais como essas do GRANDE SERTÃO VEREDAS é a única alternativa que nos resta para construirmos um diálogo autêntico entre passado e presente. Precisamos agir a favor da cultura do povo como o “cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos” (BENJAMIN: 1996, 223).

O ENCONTRO DOS POVOS em Chapada Gaúcha-MG é um projeto-piloto indispensável para que o homem do sertão dos Gerais continue vivo não apenas em sua vitalidade biológica, mas também, e sobretudo, na sua existência enquanto portador de experiências e memórias.

“A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos narradores anônimos. [...] O grande narrador tem sempre suas raízes no povo [...]. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte [pois] contar história sempre foi a arte de contá-las de novo e elas se perdem quando as histórias não são mais conservadas” (BENJAMIN: 1996, 214, 198, 204-205).

A narrativa do romance GRANDE SERTÃO: VEREDAS, que se filia a uma tradição literária de escritores brasileiros a qual também pertencem Euclides da Cunha, Afonso Arinos, Hugo de Carvalho Ramos e Bernardo Elis, entre outros, não obstante ser obra de ficção, funda-se na busca de um referencial que teve na ORALIDADE a base de sua estrutura de narração. Guimarães Rosa se apresenta como um dos maiores narradores literários na Literatura Universal porque foi encontrar os personagens de seu enredo no meio do povo, na relação direta com os porta-vozes da reminiscência.

A narração feita por Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas é do nosso ponto de vista uma tentativa de buscar uma nova aproximação entre a Musa do Romance e a Musa da Narrativa da qual já tratamos neste ensaio. Essa aproximação não deixa de ser, pois, um esforço épico-literário que se utiliza de uma “semelhança entra-sensível” para que assim se estabeleça uma possível “ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário, irredutível” (BENJAMIN: 1996, 111). Guimarães Rosa tenta aproximar-se do sertão na sua profundidade mais subterrânea, mais difusa, perdida nos meandros da memória do geralista sertanejo.

Somente com a sensibilidade de um Guimarães Rosa que por meio de um romance constrói uma representação épica de um SERTÃO MÓVEL que tem como único refúgio a REMINISCÊNCIA do sertanejo, que poderemos fazer com que essa modernidade cartesiana não engula de vez o passado, o homem e sua ORALIDADE AURÁTICA (BENJAMIN: 1996, 170), não mate em definitivo a possibilidade de continuar existindo não só no Sertão dos Gerais, mas em qualquer parte do Mundo, tantos quantos narradores tradicionais forem necessários para que a arte de contar se mantenha preservada. Se mantenha como centelha acesa na busca de identidades, na construção de memórias e na preservação da história do Povo. Que o CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE GUIMARÃES ROSA seja essa centelha como luz no fim do túnel no diálogo entre o nosso tempo e outros tempos passados.

Se o sertão e a vida são TRAVESSIAS – como o são no romance de Guimarães Rosa... Se o sertão é móvel para continuar existindo com seus narradores, que esta, pois, seja sua estratégia de sobrevivência e de redenção ante a catástrofe da Modernidade. O sertão urucuiano ou dos Gerais continua resistindo a essa modernidade graças a REMINISCÊNCIA de narradores tradicionais ainda existentes no Entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas.

REFERÊNCIAS
• ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do Nacionalismo, Lisboa-Portugal: Edições 70, 2005.
• ARAÚJO, Sandra (Org.). Antônio Dó de Volta ao Grande Sertão Veredas, Bsb/Chapada Gaúcha-MG: Unifam/Prefeitura Municipal, 2007.
• BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política, Trad. S.P. Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1996.
• BERTRAN, Paulo. História da Terra e do Homem no Planalto Central, Brasília: Solo, 1994.
• CHAUL, Nasr F.; Caminhos de Goiás: da Construção da Decadência aos Limites da Modernidade, Goiânia: UFG, 2002.
• COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: Englobamento, Exclusão e Resistência, Tese de Doutorado, PPGAS, Brasília: Unb, 2003.
• DUARTE, L.M.G; THEODORO, S.H. Dilemas do Cerrado, Rio de Janeiro: Garamond, 2002.
• GAGNEBIN, J.M. Walter Benjamin: Os Cacos da História, Trad. S. Salzstein, 2ª Ed., São Paulo: Brasiliense, 1993.
• JACINTO, Andréa Borghi. Afluentes de Memória: Itinerários, Taperas e Histórias no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Dissertação de Mestrado, Departamento de Antropologia, Campinas-Sp: IFCH/Unicamp, 1998.
• MARTINS, Saul. Antônio Dó, 3ª Ed., Bh: SESC-MG, 1997.
• MATOS, Olgária C.F. Os Arcanos do Inteiramente Outro: A Escola de Frankfurt – A Melancolia e a Revolução, São Paulo: Brasiliense, 1989.
– A Escola de Frankfurt: Luzes e Sombras do Iluminismo, São Paulo: Moderna, 1993.
• MENDES, Xiko. Formoso de Minas no final do Século XX – 130 Anos!, Formoso-MG: Prefeitura Municipal, 2002.
– O Mito da Interiorização através de Brasília, Brasília: Asefe, 1995.
– Eco-história Local: Formoso em Sala de Aula, Formoso-MG: Unifam/Prefeitura Municipal, 2007.
• ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988a.
– Noites do Sertão, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988b.
– Literatura Comentada, 3ª Ed., Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1990.
• SARAIVA, Regina C. F. Sertão, Cerrado e Identidades, In: Oralidade e Outras Linguagens, Ano IV, Nº: 15, Brasília: CEAM/UnB, dezembro de 2004.
• VASCONCELOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais, 4ª Ed., Bh: Itatiaia, 1974.

PLANALTINA PRESTA HOMENAGEM AO HISTORIADOR PAULO BERTRAN

Homenagem ao Historiador Paulo Bertran
(Discurso do Professor XIKO MENDES proferido durante SOLENIDADE EM HOMENAGEM AO ESCRITOR PAULO BERTRAN em dezembro de 2005, em Planaltina – DF).

Em nome da Diretoria da ACADEMIA PLANALTINENSE DE LETRAS da qual sou o atual Diretor Cultural e de Comunicação, e em nome de seus membros efetivos, entre os quais, a escritora Kora Lopes, Presidente da nossa Casa de Letras nesta bicentenária cidade histórica de Planaltina, venho prestar nossa homenagem a este grande intelectual brasileiro, mas sobretudo Intelectual deste Planalto Central – síntese da cultura mineiro-goiano-brasiliense.
Venho aqui em primeiro lugar, não para falar sobre sua obra monumental – pois muitos falarão delas nos próximos anos – mas quero falar da amizade que construí ao longo dos últimos doze anos com este Homem do Cerrado. Conheci o Professor Paulo Bertran por acaso. Em setembro de 1993, alguns meses depois de ter concluído o Curso de História no Uni-CEUB e depois do Departamento de História daquela instituição ter escolhido a minha monografia como uma das duas melhores daquele ano, fui convidado a expor uma palestra sobre o tema da minha pesquisa na SEMANA DE HISTÓRIA que aconteceria naquele ano de 1993 lá no CEUB. E nesta palestra recebi o convite para conhecer o professor Paulo Bertran.
Minha monografia – que depois virou livro com o título “O MITO DA INTERIORIZAÇÃO ATRAVÉS DE BRASÍLIA – trazia um enfoque polêmico sobre a mudança da capital. Minha professora orientadora, Eleonora Zicari, doutora em História pela UnB e amiga do Professor Paulo Bertran, pediu, então, que fóssemos até ele verificar a possibilidade de publicar dois capítulos na revista “DF LETRAS” – publicação da Câmara Legislativa do DF idealizada e editada pelo escritor Paulo Bertran. Fomos, então, à casa dele no final da Asa Norte. Com seu jeito de goiano do interior, fala mansa, passos lentos, extremamente modesto, com uma simplicidade indizível, Paulo Bertran fez-nos adentrar, pacientemente, aos recintos de sua casa mostrando com a paixão própria dos grandes intelectuais todos os livros clássicos que dispunha em sua biblioteca sobre Brasil, Goiás, Centro-Oeste, e especialmente sobre esta vasta região do Planalto Central. Percebi, então, que estava diante de um grande mestre da Historiografia contemporânea. Naquele 1993 já estava escrevendo o seu clássico “HISTÓRIA DA TERRA E DO HOMEM NO PLANALTO CENTRAL”.
Fomos embora deixando ali parte da minha monografia para a DF LETRAS. Uma semana depois, o Prof. Paulo me ligou convidando-me para o “IIII Encontro de Historiadores do Planalto”, ocorrido em 93 na sede do Instituto Histórico e Geográfico do DF. Pediu-me para escrever uma palestra sobre Formoso-MG, minha terra natal e tema de outra pesquisa histórica que eu realizava, e que o deixou fascinado. Fiz a palestra e quando menos espero, chega em casa a nova edição da DF LETRAS. A surpresa: não saiu nada da monografia sobre Brasília, mas publicou na íntegra as quatro páginas da minha palestra sobre Formoso de Minas. Questionei-lhe, ao que me respondeu vários anos depois: “Xiko, cada um de nós temos uma paixão: você por Formoso de Minas; eu, por Brasília. Resolvi deixá-lo feliz sem que eu ficasse triste”.
Paulo Bertran eram assim: um soldado das letras na defesa de Brasília, um defensor do Planalto Central, enfim, um apaixonado por tudo que fazia, por tudo que o cercava – família, amigos, natureza, e o Cerrado, simbiose de todas as suas paixões. Nascido no antigo arraial de Santana das Antas – modernamente conhecido como Anápolis-GO – Paulo Bertran fez do Distrito Federal a extensão de sua terra de origem. E esta sua devoção telúrica e compromissada com a identidade candanga fez dele merecedor de várias homenagens. Uma delas ocorreu no plenário da Câmara Legislativa do DF na manhã de 16 de março de 2001, fruto de um projeto de resolução dos deputados distritais Maria José Maninha (PT) e Rodrigo Rollemberg (PSB). O Parlamento Brasiliense conferiu a ele o merecido título de CIDADÃO HONORÁRIO DE BRASÍLIA.
Mas não apenas Brasília deveria fazer tal homenagem. Cidades como a nossa Planaltina e outras tantas que se espalham pelo território do Planalto Central deveriam fazer, periodicamente, atos evocatórios de sua memória, pois foi o historiador Paulo Bertran quem deu a estas cidades uma identidade de pertencimento pré-brasiliense. Na Historiografia sobre a Transferência da Capital para o Planalto Central, há, infelizmente, uma tendência teórico-triunfalista, que ainda é predominante: a de achar que antes de vir a Capital Federal para o Centro-Oeste, tudo nesta região era atraso; a impressão que se tinha nas cidades do Litoral era a de que o Centro-oeste era povoado de uma gente conservadora de costumes coloniais, embrutecida, cheia de arcaísmos do tempo dos bandeirantes, uma gente que só sabia criar gado curraleiro pé duro, plantar umas rocinhas em terrenos brejados e nada mais.
Tal preconceito, parte dele para justificar a Transferência da Capital, ignorava a identidade do Povo do Planalto Central. Ignorava que antes de Brasília cidades mineiras como Paracatu ou cidades goianas como Luziânia e Pirenópolis – só para ficar entre exemplos de lugares próximos de nós – eram todas pólos difusores de civilização, cidades que surgiram do encontro entre mineradores e pecuaristas, do encontro entre a cobiça e a vontade de fixar-se à terra. Deste encontro dialético entre um passado mediado pelos saberes milenares pré-colombianos dos Tapuias-jês, dos Crixás, dos Goiáses..., e os saberes do homem branco, desta fusão entre diferentes culturas nasceu isto que o historiador Paulo Bertran batizou, de forma apropriada, de Homo Cerratense. Paulo Bertran mostrou que o Planalto Central, muito antes de Brasília existir, já era um pólo cultural dinâmico e permanente com culturas pré-históricas e legados relevantes para a formação do Povo Brasileiro residente no centro do país.
Revolvendo documentos perdidos em arquivos e que permaneceram inéditos por duzentos anos, consultando fontes nunca antes acessadas, identificando lugares, situações e personagens só citados em relatos empoeirados do Brasil-Colônia, o historiador Paulo Bertran construiu uma nova identidade desta gente do Cerrado. O Cerrado, nos livros do Professor Paulo Bertran, não é uma invenção geográfica do Tratado de Madri rasgando fronteiras imaginárias do Tratado de Tordesilhas entre portugueses e espanhóis. Paulo Bertran deu ao Cerrado uma unidade ecossistêmica que ao mesmo tempo é uma unidade cultural e eco-histórica onde natureza e cultura não são conceitos antagônicos.
Paulo Bertran foi um intelectual completo, não por que dominasse diferentes atividades de pesquisa, mas por que sabia recorrer, com humildade, a diferentes ciências e saberes como a Arqueologia, a Paleografia, a Paleontologia, a Espeleologia, a Ecologia e aos mais variados tipos de conhecimentos para fazer desse cruzamento de informações uma síntese agradável de se ler em páginas memoráveis que escreveu sobre o Cerrado brasileiro.
Como o sertão, para Guimarães Rosa, não tinha janelas nem portas por que o sertão é o mundo; para Paulo Bertran, o Cerrado é um mundo herdeiro de uma cultura cerratense ou cerradeira que vem lá da Pré-história e tem uma seqüência no tempo; um mundo que não é esse cerrado do agro-negócio e das pranchetas do IBGE que divide povos com história e cultura comuns em povos separados no mapa com esses nomes que a gente chama de Mato Grosso, de Goiás, de Distrito Federal ou de Minas Gerais. Para Paulo Bertran, o Povo Cerratense que, erradamente, chamamos de brasiliense, de mineiro, de goiano, de matogrossense..., é, na verdade, um povo único, singular na sua identidade ecossistêmica e eco-cultural. Paulo Bertran não via o Cerrado, aliás, ele não via nada em fragmentos, pois para ele a unidade na adversidade produzia, numa relação dialético-holística, a mudança e a permanência; o parto do novo era ao mesmo tempo a gestação de uma consciência ancestral promotora do senso de pertencimento.
Em livros que se tornaram clássicos como “História da Terra e do Homem no Planalto Central” ou “Notícia Geral da Capitania de Goiás”, entre tantos outros que escreveu, inclusive sobre várias cidades goianas como Palmeiras, Niquelândia ou Goiás Velho sempre fica patente seu compromisso quase que instintivo com a construção desta consciência holística evocatória da ancestralidade do Povo Cerratense. Evocar o passado sem fazer dele bandeira política para recuar nas transformações, e sim, para que a gente tenha uma dimensão temporal clara sobre a nossa existência eco-histórica é condição indispensável para que, num contexto de globalização como o que vivemos, não se confunda desenvolvimento do cerrado com a morte dele por meio de monoculturas voltadas para o mercado consumidor externo. Ler os livros de Paulo Bertran é o mesmo que soltar um grito de profundo silêncio onde só a alma cerratense milenar escuta e diz para Oreádes – a deusa pitonisa guardiã das tradições do Homo Cerratense – para que ela cuide do Cerrado, cuide dele antes que o Cerrado seja visto apenas nas obras do meu amigo amigo Paulo Bertran.
Mais uma vez, agora em nome da UNIFAM – União Nacional de Integração entre Formoso, Autoridades e Amigos de Minas, entidade que representa o Povo de Formoso de Minas em Brasília e que tenho a honra de presidir – quero agradecer do fundo do coração a oportunidade de compartilhar deste momento solene feito em memória da figura ímpar que é o Professor Paulo Bertran. Minha cidade – Formoso de Minas, que é também um município do Planalto Central, portanto, cidade co-irmã de Planaltina e cujo documento mais antigo sobre sua existência foi encontrado pelo historiador Paulo Bertran no Arquivo Ultramarino de Lisboa – faz-se presente neste agradecimento por tudo o que ele fez por estas tantas cidades cerratenses.
E Planaltina – trevo de passagem de gente do sertão que perambulava pela Picada da Bahia nos tempos coloniais e hospedava-se na casa do Mestre d’Armas, herói anônimo fundador desta cidade-mãe de Brasília, sente-se igualmente rejubilada nesta noite de encantamento com o Homem do Cerrado. Planaltina, cidade a que Paulo Bertran dedicou páginas primorosas para falar de seu passado colonial, tem sua origem como resultante do encontro entre a decadência da mineração no fim do século XVIII e a prosperidade da pecuária nascente no começo do século XIX. E esta Planaltina de casarios coloniais, que guarda reminiscências bicentenárias nos becos de silêncio indizível, tenho certeza, está honrada de ser, nesta noite maravilhosa, o local escolhido para homenagear o escritor Paulo Bertran falecido no mês de outubro passado.
Obrigado Escritor Paulo Bertran! Que Oreádes, a Deusa Protetora do Cerrado e musa preferida que te inspirou tantos livros, ouça sua voz persistente na defesa do nosso Cerrado. Que Oreádes inspire esta gente cerratense como o Povo de Planaltina a construir uma consciência ancestral e ecológica capaz de conciliar passado e presente promovendo o progresso, mas conservando a natureza.

APL dará posse à sua nova direção dia 8/9/11.

A nova Diretoria e Conselho Fiscal da ACADEMIA PLANALTINENSE DE LETRAS será empossada em sua sede, nas dependências do Casarão Hotel, em Planaltina-DF, dia 8/9/11, a partir das 19h30.

Diretoria Administrativa:

Geralda Vieira (Presidente);
Xiko Mendes (Vice-presidente);
Joésio Menezes Diretor Administrativo;
Marcos Alagoas (Diretor Financeiro) e
Adenir Oliveira (Diretor Cultural e de Comunicação Institucional).

Conselho Fiscal:

Kora Lopes da Silva (Presidente);
Vanilson Reis (Relator) e
Aurenice Vitor (Sub-Relatora).

Sejam bem-vindos!
Boa sorte à Direção da APL!
Prefácio à 4ª antologia da ACADEMIA PLANALTINENSE DE LETRAS

Prof. Xiko Mendes
(da Associação Nacional de Escritores – ANE).

Preservar a Cultura de um Povo é dignificar o progresso como símbolo do trabalho. Preservar a Cultura de um Povo é venerar o Passado como princípio da evolução humana, é velar pela Civilização do Mundo. A sociedade que se deixa corroer pelo vírus do ESQUECIMENTO é a sociedade dos ignorantes e apátridas indigentes, que desprezam e contestam as próprias RAÍZES CULTURAIS. O aniquilamento da História por meio do ESQUECIMENTO reproduz a barbárie suicida dos que reprovam o PASSADO e repelem o curso interminável dos acontecimentos humanos. Invocar a memória da Pátria por meio da voz de seus escritores e musas é tarefa primeira de qualquer instituição cultural comprometida com a elevação da consciência nacional. É uma pena que governantes não pensem assim.

O Estatuto da ACADEMIA PLANALTINENSE DE LETRAS – entidade criada em 1998 – é peremptório na defesa institucional de sua existência, pois ela “tem por finalidade o culto da Língua, da Literatura em suas diversas manifestações, o estudo e o conhecimento dos problemas sociais e científicos, a união e a congregação dos intelectuais de PLANALTINA, do Planalto Central e do Brasil, a difusão da cultura, das obras e dos conhecimentos gerais”. Portanto, é da responsabilidade da APL essa missão de não deixar “passar em branco” efeméride tão jubilosa quanto essa do SESQUICENTENÁRIO DE PLANALTINA.

Cidade antiga surgida do desencontro entre a desilusão de garimpeiros decadentes no século XVIII e o sonho de pecuaristas ávidos por ocuparem terras indígenas em espaços infinitos no século XIX, essa Planaltina de becos e vielas centenárias que guardam no silêncio bucólico de seus casarios um baú de histórias não escritas é também a cidade que hospedou pioneiros. Pioneiros como o MESTRE D’ARMAS que plantou essa cidade na beira do córrego que leva seu nome e suas águas correntes de esperança rio São Bartolomeu abaixo até o Atlântico; pioneiros como José Gomes Rabelo que tirou em 20/1 de 1811 um naco de sua fazenda, deu a São Sebastião para que ele salvasse o povo de uma epidemia e assim começasse a cidade goiana de Mestre d’Armas, hoje Planaltina – DF.

Tivemos, enfim, pioneiros os mais diversos que aqui chegaram transitando pela Estrada Real vinda da Bahia à Bolívia ou por outros caminhos da existência, parando com suas bagagens e fincando seu destino nesse território que se tornou um distrito de Luziânia-GO em 19/8 de 1859. Pioneiros que sonharam com a construção de Brasília, gente que veio para ajudar na promoção de seu desenvolvimento ou gente que em Planaltina nunca morou, mas se comprometeu com o seu progresso intelectual e moral.

Celebrar Planaltina aos 150 anos é celebrar sua cultura e seu passado, mas é também fazer do presente uma luta gloriosa contra o esquecimento. E nada melhor para fazer isso se não por meio da poesia invocando lembranças de pessoas, lugares e situações vivas na memória. A ACADEMIA PLANALTINENSE DE LETRAS sente-se profundamente orgulhosa dessa celebração ao reunir nessa 4ª Antologia OITO POETAS dispostos a cantarem a vida, distribuir flores, transformar silêncio em paz interior, falar do amor platônico ou libidinoso, decantar (em cada verso) as belezas registradas em nossa percepção como a água vai decantando as impurezas do mundo até mares nunca antes navegados na imaginação luso-camoniana.

Essa 4ª ANTOLOGIA vem se somar aos três volumes anteriores: “Momento Literário de Planaltina”, livro publicado em 1999 quando nossa cidade comemorava 140 anos; “Sonhos e Saudades na Abertura do 3º Milênio”, lançado em 2000, para celebrar a entrada do novo século, além de “Palavras, Sentimento e Paz”, obra alusiva aos 80 anos da Pedra Fundamental em 2002 – um dos marcos da importância de Planaltina na construção de Brasília.
Hoje, parte dos intelectuais planaltinenses se reúne novamente para honrar seus compromissos acadêmicos em prosa e verso. Convido o(a) leitor(a) a acompanhar o poeta ADENIR OLIVEIRA falando de saudade ao passar pelo rio Cocal, divagando-se na noite ao falar do desconhecido e da criança que habitam a realidade sobre mim, revelando sua fé no Divino Espírito Santo e despedindo-se antes do Fim do Mundo. Enquanto isso, AURENICE VITOR faz uma profunda reflexão sobre como o mundo moderno enterra as horas preciosas de nossa vida, como devemos ser alegres mesmo em momentos de dores lancinantes, como nos confortar após uma perda e reagir contra a indiferença. GERALDA VIEIRA invoca as mães como a melhor lembrança, celebrando Planaltina como cidade-mãe de Brasília e a Epopéia de JK como construtor da Nova Capital. Joésio Menezes reaparece com seus lindos versos líricos e alguns fesceninos, invocando sua “planaltinidade candangoiana nordestinizada” e tendo a poesia como sua metalinguagem única e primorosa.

Outra que nos dá o ar de sua graça na passarela das musas é a “Cora Coralina” dos becos candangos. Falo de KORA LOPES, poeta que escreve com leveza e sentimento, seja falando de uma Planaltina que morre nas horas ingratas de uma modernidade que mata a tradição, seja quando mergulha no eu lírico interior em seu âmago mais profundo para buscar entre nós o amor como bem supremo, a igualdade, a resignação, o sentimento de fuga, as migalhas da existência..., mostrando sempre a menina que não envelheceu dentro dela. Já MARCOS ALAGOAS nos fala de uma Nova Era com a valorização do meio ambiente, um mundo onde a poesia seja a nossa metalinguagem na comunicação com as estrelas, o tempo e a vida, e Brasília, a meta-síntese de todas as linguagens que queiram entender o Brasil moderno.VIVALDO SÓ, ao contrário do sobrenome, nunca está só. Destoando dos demais, utiliza-se de versos clássicos e de suas várias musas para eternizar a mulher como companheira inseparável de sua existência povoada de versos, amores, muitos amores num único amor: Terezinha!!!

Por fim, termino minha leitura dessa 4ª antologia da APL fechando sua última página com chave de ouro ao deleitar-me com os versos rebeldes de um convidado especial entre os outros sete poetas que me acompanharam nessa agradável Viagem Onírica por Planaltina aos 150 anos. Refiro-me ao poeta WILSON GONÇALVES, um homem que escuta o diálogo entre rosa e lagarta e extrai dele a metáfora do Brasil: um país desigual, com menores abandonados e muitos políticos corruptos. O nobre poeta, apesar de triste e saudoso, acredita no Brasil porque aqui “ainda podemos sentir o cheiro das matas e contemplar o céu cor de anil”. E também porque você, leitor, “bem mais alto irá voar”, levando esses versos em seu baú de saudades. E com a minha certeza de que esse livro de poema e prosa é o MELHOR PRESENTE para homens e mulheres sentimentais, seres viventes porém estranhos por que dotados de amor à poesia como outra forma de preservar a cultura de que tanto falamos no início desse prefácio. Que tenham boa leitura !!!